IRACI GAMA - UMA MULHER CHAMADA CULTURA
Se Alagoinhas hoje recebe o título de Cidade Histórica do Brasil agradeça a Iraci Gama, por ter convertido em centro que agrega há décadas todos os talentos culturais da cidade. Recentemente em torno dela se reuniram a secretária da Prefeitura Sônia Fontes, o artista plástico Litho Ramos, com sua arte e sua pesquisa sobre a cultura tupinambá em nosso cotidiano e o coordenador do mestrado em Crítica Cultural, Osmar Moreira. Esses quatro “notáveis” (pessoas de grande simplicidade e acessibilidade, na verdade) trabalharam no projeto que chamou a atenção de figuras de peso na esfera nacional e internacional inclusive, como Henrique Iglesias, diretor há muitos anos do BIRD e um dos seus conselheiros. Essas quatros mentes pensaram um projeto inédito em termos mundiais: O Museu do Homem Livre e Parque da Águas. Agora Alagoinhas está prestes a se tornar um dos principais centros de discussão e preservação cultural em uma dimensão jamais imaginada. Iraci fala dessas perspectivas e projetos. Dialogar com Iraci Gama é como adentrar o mundo maravilhoso da cultura. O resultado, dessa conversa você confere aqui nessa entrevista.
Portal – O que significa este título de Alagoinhas Cidade Histórica para a senhora que tem mais de 30 anos de militância no movimento cultural da cidade e na preservação de sua memória, especialmente com relação à história da ferrovia?
Iraci Gama - O título é muito importante porque nos permite ter recursos indispensáveis definidos pelo Ministério da Cultura através do Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – para esse trabalho de restauração, de preservação, de ocupação, e de requalificação dos espaços. Não é um trabalho destinado a alguns prédios, não é um trabalho tão somente voltado para o patrimônio arquitetônico, é um trabalho mesmo voltado para o patrimônio cultural. Porque ele relaciona o que já existe, dentro de um determinado contexto, para esta valorização. Daí o nome de núcleo histórico. Existe o núcleo histórico de Alagoinhas Velha, que vai envolver a igreja (inacabada) como elemento central, e os elementos que estão em seu entorno, mas levando em conta o que acontece também com as pessoas. A preocupação com o que as pessoas fazem ali, o modo como as pessoas vivem ali, o que merece ser considerado e preservado. Então a preocupação é realmente com o patrimônio material e imaterial. Além disso, na medida em que você analisa e busca meios de preservação, você procura também divulgar isso que existe, há a possibilidade de se trabalhar agora com esse material como um espaço, um local, um instrumento de ampliação dessas informações para outras pessoas e consequentemente entraríamos no campo da economia da cultura. Esse material devidamente valorizado e difundido vai atrair também pessoas que são interessadas na área para visitação o que pode tornar esse lugar um ponto de atração turística. E existem várias modalidades de turismo voltadas para a pesquisa, para a cultura em si e até para ambientes comunitários e rurais, temos todas essas possibilidades que podem se acoplar ao turismo de negócios, fortalecido, hoje, com essa perspectiva de ligação com o litoral.
Portal – Alagoinhas se tornaria um pólo de convergência e de difusão cultural dos mais importantes do pais a julgar pela tradição que tem e pela inquietação e criatividade de seus artistas, de seus agentes culturais?
Iraci Gama - Pensei em discordar e dizer já é, mas dessa forma estaria mentindo, nós queremos ser, temos potencial para ser temos disposição para ser, temos principalmente trabalho nesta área. Porque se a gente levar em conta já três décadas de trabalho com o movimento cultural, se a gente buscar os idos de 1970, sempre que isso foi feito foi com a intenção de buscar as comunidades do entorno. Esse trabalho de forma organizada começa na faculdade, nunca foi uma coisa exclusiva de Alagoinhas, era uma coisa que atingia toda a região. Então, poderíamos estar melhor encaminhados no sentido de ser esse centro, esse pólo que a gente tanto quer ser, precisa ser. Porque uma cidade que tem a condição de servir de elementos de apoio, ela precisa ser também elemento dinamizador. Não apenas atrair as pessoas para cá, trazendo a sua produção, o seu conhecimento, sua informação, sua criatividade, mas principalmente fazer com que esse trabalho dê retorno e fazer com que essa comunidades possam fazer esse mesmo trabalho de produção, de estímulo a suas comunidades específicas.
Portal – Dizem que nossa vida adulta tem uma forte ligação com a infância, com relação a cultura isso é verdade?
Iraci Gama - Isso realmente veio da minha infância, porque na minha casa em matéria de pobreza nós tínhamos o essencial. Nasci em Alagoinhas na casa que moro até hoje, na realidade nasci cinco casas antes, mas quando minha mãe morreu nós fomos para essa casa que era dos pais dela que foi quem nos criou. Eu tinha um ano de idade quando minha mãe morreu. Tenho dois irmãos Marelene, professora aposentada e José Gama, aposentado do Banco do Brasil. Eram os pais da minha mãe Pedro da Gama e Vitorina da Silva Gama e quatro filhas (tias) e o irmão mais velho que já era empregado da leste. Meu avô também era aposentado da leste. O tio era Zeca da Gama era um sujeito muito criativo porque ele inventava peças aqui na oficina, ele era caldeireiro, trabalhava com as locomotivas a vapor. Eu nasci em 1943 e já o encontrei trabalhando. Eram tarefas de nos causar muito orgulho. Certa vez chegou uma máquina no lastro, praticamente, devido a um acidente e ele fez com que essa máquina saísse daqui funcionando. Ninguém esperava que ela fosse funcionar mais, ele teve que fabricar várias peças para uma máquina a diesel quando até então só se trabalhava com máquinas a vapor aqui em Alagoinhas.
Portal – O que significava a ferrovia para aquela comunidade, a sociedade Alagoinhense de sua infância?
Iraci Gama - Significava tudo. O mundo era a Ferrovia. Ver o trem passar na porta, me lembro como se fosse hoje, quando o Marta Rocha passou, era 1954, nesse mesmo dia foi inaugurada a Rádio Emissora de Alagoinhas. Me parece que eu estou me vendo em pé no portão vendo aquele trem lindíssimo passando, tudo mundo com a maior euforia.
Portal – Antigamente, a estação ferroviária representou para aquela época o que foi o shopping Center nos anos 90, um ponto de encontro de glamour de elegância?
Iraci Gama - Com certeza, mas acho que tem uma diferença, o shopping é um lugar para onde as pessoas vão no interesse da compra. O que privilegia, o que serve de elemento estrutural é o comércio. No caso da estação o mais importante era a movimentação das pessoas. O chegar e o sair da estação significava você receber e você levar a sua própria vida, onde já vai também o seu modo de ser, de pensar e a sua cultura. Essa troca, esse intercâmbio que acontecia era a coisa mais importante. Você vir receber uma autoridade que chega. Elas não vinham pela rodovia porque era de terra batida. A estrada mesmo era a estrada de ferro.
Portal – Era um local repleto de afetividade porque marcava a alegria da chegada à tristeza da partida…
Iraci Gama - Ah sim… se fosse para entrar pelo campo poética a gente não saia mais dele. Não apenas a questão do emocional da saída e da chegada, mas também o emocional das pessoas, que se acostumaram a alegria da passagem do trem, a hora de passar o trem é uma hora especial, todo mundo corre para ver o trem… é o trem que vai passar. Não é tanto porque quem vem lá dentro, mas o trem em si como aquele veículo de levar tanta coisa boa de trazer tanta coisa boa. Apesar de ver todo dia de saber o que vai acontecer era emocionante. E tinha as pessoas que vendiam coisas na estação. Tinha o bar de seu Bispo que era ponto de encontros. Por isso nós pensamos em botar aqui um café litero-musical. Os vendedores traziam seus balaios de laranja e descascavam na hora, tinha todo tipo de bolo. Lembro de dona Maria que fazia o café, esquentava o café, colocava uma rodilha e vinha vender aquele café levando na cabeça, tanto que ela ficou conhecida como Maria Café-quente.
Portal – Havia os alagoinhenses que iam estudar na capital e traziam as novas idéias, deviam vir também às revistas de moda de cinema da época.
Iraci Gama - Era um ponto de encontro mesmo. Claro que toda a movimentação ideológica também se dava através do trem. Isso sem falar nos ferroviários aqui, eles serviram de exemplo e de modelo para o que acontecia na ferrovia entre Bahia e Sergipe. Alagoinhas era ponto de destaque, tinha essa força especial pelo fato de ser um entroncamento. Se você tivesse uma informação para passar para Aracaju, ela iria passar primeiro por Alagoinhas, acontecendo o mesmo com Juazeiro. Alagoinhas era o ponto de ligação com o sertão e com o litoral.
Portal – O trem era um meio de comunicação, um operário da locomotiva tinha contato com outros funcionários em todo o estado…
Iraci Gama - Alagoinhas aprendeu muito com os ferroviários no campo da liderança política. E esses operários aprenderam com quem? Achamos que eles aprenderam com as pessoas que vieram de fora principalmente da Europa.
Portal – O ingleses para montar a própria ferrovia e passar um tempo operando o sistema devem ter passado um bom período na cidade.
Iraci Gama - O que eu sei é os funcionários da empresa, os ingleses, dominaram essa área a partir de 1855. O nosso primeiro trem correu no dia 13 de fevereiro de 1863. Com apenas 10 anos de emancipação, não era ainda cidade, nos passamos a ser cidade em 1880…
Portal – Nós não éramos cidade, éramos uma vila, uma vila com um importante entroncamento ferroviário?
Iraci Gama – O que eu acho de interessante nisso é o que os ingleses já vieram pra cá… se você considerar que o primeiro trem que correu sobre trilhos no mundo foi em 1835 na Bélgica… vinte e oito anos depois o trem já corria entre nós e a gente não soube considerar e respeitar isso e ainda me perguntavam quando souberam que estávamos lutando para colocar Alagoinhas como cidade histórica, me diziam mais o que é que você vai inventar para dizer que Alagoinhas é cidade histórica. Você veja o que é a ignorância.
Os ingleses passaram sua companhia para os franceses em 1911 e Alagoinhas recebe agora uma nova influência cultural, veja só a riqueza disso. Eles ficaram aqui até 1935. Meu avô foi do tempo dos franceses e havia muitas queixas trabalhistas, inclusive registradas em jornal da época “O Alarma”. Então vem Getúlio e toma a atitude de interferir na companhia. Em março 1935 é criada a Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro.
Portal – A ferrovia então passa a carregar todo aquele simbolismo nacionalista de Getúlio com a idéia dele de integração nacional…
Iraci Gama - Eu sou intrigada como em Alagoinhas não tem um monumento a Getúlio porque os ferroviários tinham uma grande admiração por ele. Essa admiração vinha da própria intervenção porque a situação com os franceses era de muito descalabro, muito desrespeitoso. Aqui quem assume a estatal é um baiano chamado Lauro Farani Pedreira de Freitas, que era filho de Graciliano de Freitas, que foi editor do jornal Correio de Alagoinhas. O Lauro de Freitas era filho de Alagoinhas e o Lauro Farrani9 também. Ele assume a ferrovia e ele dá um tom todo especial a Leste, ele terminou se impondo de tal maneira na sua forma de administrar que terminou sendo indicado como candidato para governo do Estado e chegaria a governador não fosse o acidente fatídico de avião que o vitimou. Então você veja a força da ferrovia nesse tempo e a força de Alagoinhas nesse contexto histórico da Bahia. A própria constituição de Alagoinhas como polo de micro-empresas, como produtor de laranja vem da ferrovia. Então ainda me perguntam o que é que eu vou inventar para dizer que Alagoinhas é uma cidade histórica.
Portal – Mas falando da igreja inacabada que foi recentemente rebatizada como Nave Antropofágica, e terá o Parque do Homem Livre, algo de abrangência internacional, que foi basicamente pensado por você, Litho Silva e Osmar Moreira. O que é esse projeto?
Iraci Gama - Liberdade é aquilo que o homem sempre está buscando. Mas será que existe algum lugar em que o homem seja livre? Então a gente quer trazer pra cá essa temática, como uma oportunidade de oferecer à comunidade não só alagoinhense como as pessoas que venham nos visitar quais são essas várias tentativas, essas várias possibilidades, essa busca de liberdade que o homem tem em si, essa necessidade de gerir a sua própria vida, de decidir a sua própria vida. É você saber respeitar o seu pensamento, o pensamento do outro, a busca dessa convivência pacífica. Porque se fala tanto em paz, mas o que é que é a paz se a gente a cada dia fica lutando mais, pra ter mais, a ganância passa a ser um vetor, nos dias de hoje então é terrível, o consumo é que dirige as pessoas. Então você passa a ter também o interesse da dominação do outro para que você possa ter mais, não se importa que o outro não tenha nada.
Nesse aspecto, a arte, portanto, seria uma representação simbólica desse estado de liberdade e a gente quer trazer para lá, para o parque, essas diferentes maneiras de entender como é que as pessoas nas diferentes partes do mundo, as pessoas pensam e sentem e tem essa visão de liberdade, como essa representação se dá. Então estamos partindo de um material básico que são pesquisas feitas por Litho Silva da nossa realidade indígena, presente no nosso comportamento cotidiano inclusive.
Portal – Os prédios históricos da cidade estão sendo derrubados, isso não ficará contraditório com o título de Cidade Histórica?
Iraci Gama - Quando a gente olha nessas fotos a década de 20, a década de 30, a cidade como era bonita, os prédios que se construíam, que ultimamente as pessoas estão destruindo, por isso inclusive que eu me animei muito com a idéia de Alagoinhas ser cidade patrimônio do Brasil para que as pessoas não tenham mais o direito de ficar derrubando um bem desse como se ele fosse uma coisa particular, um bem desse não é um bem de um cidadão é um bem de toda uma coletividade que nós representamos. Então é preciso que haja respeito por essa história, respeito por essa marca de um povo.
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