Nunca se escreveu e se debateu
tanto sobre identidade cultural como nos últimos trinta anos. Nunca uma questão
foi tão popular e tão acessível aos mais diferentes grupos, comunidades, nações
e as situações de vida e de existência. Talvez não seja exagerado afirmar que
através desse fenômeno estamos reaprendendo a perguntar, interrogar. Mas a que
preço, sob que condições, visando a que, suspendendo a nova ordem do mundo ou
simplesmente reproduzindo-a?
Se estamos no reino da cultura
capitalística, qual o sentido então de identidade cultural? Auto-identificar-se
burguês, culto, ilustrado, dono da verdade, com dinheiro para consumir representações
que o fetichizem e o proliferem com os valores de sua classe? Fechar-se num
pequeno mundo comunitário e reproduzir secreta e eloquentemente valores
burgueses que julga combater? Ou encarar que identidade não é uma natureza, mas
um processo de construção social que implica sempre relações de poder que
atravessam desejos, sonhos, fantasias e de que não teremos qualquer chance se
não suspendermos essas formas de definição de cultura e construirmos outras,
singulares, sempre diferenciais, que nos garantam outros agenciamentos, outras
formas de afirmação da existência?
Responder a essas questões, eis a
condição da identidade na atual política cultural brasileira. Em três grandes
eixos – cultura como um bem simbólico; como um direito de acesso a bens culturais,
inclusive de máquinas para produção e reprodução de imagens e auto-imagens; e
como um campo de trabalho e geração de rendas e riquezas, milhões de
brasileiros foram convocados a debater e encaminhar formas de
institucionalização da malha cultural. Ou seja, está em curso no Brasil, desde
2003, a possibilidade de criação não só de sistemas e planos nacionais e estaduais
de cultura, mas de planos decenais municipais de cultura envolvendo seus mais
de 5.500 municípios.
Isso quer dizer que todos os
segmentos culturais — teatro, dança, música, artes visuais, audiovisual e patrimônio
- vão ter representantes nos conselhos municipais de cultura, os conselhos municipais
de cultura vão mediar a legislação sobre políticas culturais que respondam
democraticamente as reivindicações culturais, e essas reivindicações culturais,
para terem algum sentido, devem não só afirmar que cada indivíduo, grupo, comunidade,
território produziu, produz e produzirá bens simbólicos, através de seus modos
de vida, mas que o seu acesso a outros modos de representação cultural e aos laboratórios
de sua reinvenção (pontos de cultura, pontos de leitura, infocentros, bibliotecas,
ilhas de produção, entre outros) deve ampliar a massa de trabalhadores
culturais e fazer emergir outra noção de mercado e de mercadoria.
O "bem simbólico" que
está na base dessa definição e movimento cultural no Brasil não só quer apenas
se opor a cultura, entendida até agora e ao longo de mais de 500 anos, como um
”bom negócio" — que ironicamente também precisa de bens, mas garantir e
sustentar a indivíduos, grupos, territórios o confronto de seus bens simbólicos
com outros bens simbólicos já consagrados, canonizados e de forte circulação no
mercado capitalístico, bem como a reelaboração de outra imagem/representação de
si e do outro, revertendo com isso a falsa imagem identitária que fazia de si sem
perceber e ao mesmo tempo a "verdadeira” imagem identitária do outro que
consumia sem refletir. E o mercado cultural daí derivado só faz sentido de for
socialista e solidário.
Um exemplo desse investimento e
agenciamento coletivo num contexto (g)loca|, é o trabalho cultural sobre a
cidade de Alagoinhas articulado pela professora de Letras Iraci Gama. Ao longo
de 30 anos tem reunido artistas, professores, gestores de cultura num debate
insistente sobre falsos problemas acerca da identidade (o Parque de Santo
Antonio ou Parque de São Francisco?), mas se colocado quase como uma
instituição (o atual funcionamento da FIGAM, não vale) no levantamento,
catalogação, digitalização e publicização de dezenas de milhares de peças
culturais sobre a memória da cidade. Além disso, é a atual presidente do
Conselho do Cultura que, como foi dito acima, deveria ter uma imensa tarefa ligada
a criação do Plano Decenal de Cultura Municipal, através de uma secretaria que
é também de Esporte e Lazer.
Vivemos, portanto, em Alagoinhas
um profundo e difícil dilema cultural. De um lado, uma hegemônica e impiedosa massificação
cultural, de outro um imenso acervo cultural em vias de se organizar, uma
legião de sujeitos criativos distribuídos nos mais diferentes segmentos
culturais, uma série de equipamentos e mesmo instituições culturais (vide a
Secretaria de Cultura, Esporte Lazer, como uma das poucas na Bahia), mas sem um
agenciamento público que faça essa leitura e coloque a cidade na vanguarda de um
debate cultural na Bahia.
Do ponto de vista dos Estudos da
subalternidade: crítica cultural comunitária, posicionalidade política e
invenção de novos sujeitos de direitos — um dos projetos em execução no
mestrado em Crítica Cultural do Campus ll da UNEB, esse dilema cultural vivido em
Alagoinhas sequer será entendido se não rediscutirmos o sentido e papel
cultural da FIGAM, criarmos uma secretaria específica para a cultura e dotar
cada bairro da cidade de condições para que escolas e equipamentos de cultura
(centros, bibliotecas etc.,) mobilizem personalidades de cultura e de educação
para decidir sobre a noção de cultura em diferença que se quer para a cidade.
Assim, o debate sobre identidade
cultural, a meu ver, torna-se fundamental não só para aprendermos a refutar e a
esconjurar o fantasma daquilo que não somos, mas principalmente para nos habilitarmos
a descrever realidades culturais concretas, sejam ele objetivas e/ou
subjetivas, tendo sempre como um crivo: quem produziu a riqueza material
existente - senão a natureza e a acumulação da força de trabalho, e a quem essa
riqueza deve retornar. Ou ainda: qual o real débito da FIGAM e do município de Alagoinhas
com a trabalhadora cultural e pessoa física professora Iraci Gama que, ao longo
de décadas, tem investido seus próprios recursos na construção do patrimônio
memorial da cidade? O mais incrível é que nem governos ditos socialistas - por
que vinculados aos fantasmas stalinistas, se deram conta de que cultura implica
força de trabalho e força de trabalho ainda deve ser comprada, remunerada,
senão vira relações escravistas ou o que é pior: vira esquizofrenia pública
denegada (não invisto em cultura, mas preciso do seu acervo para afirmar a
cidade diante das instituições estaduais e federais, afirmo culturalmente a
cidade diante das instituições, mas nego a imagem da criadora nas peças
publicitárias sobre a inserção de Alagoinhas no PAC da cultura...).
TEXTO: Prof. Osmar Moreira é doutorado
em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia e pós-doutorado pela
Université Paris 8. Atualmente é professor titular e coordenador do Mestrado em
Crítica Cultural da UNEB. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura
Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas; tropicalismo, cinema
novo, subalternidade, micro política e políticas da subjetividade.
Email: osmar.moreira@uoI.com.br
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