quarta-feira, 14 de março de 2012

PROFESSOR OSMAR MOREIRA: PROBLEMATIZANDO IDENTIDADES CULTURAIS



Nunca se escreveu e se debateu tanto sobre identidade cultural como nos últimos trinta anos. Nunca uma questão foi tão popular e tão acessível aos mais diferentes grupos, comunidades, nações e as situações de vida e de existência. Talvez não seja exagerado afirmar que através desse fenômeno estamos reaprendendo a perguntar, interrogar. Mas a que preço, sob que condições, visando a que, suspendendo a nova ordem do mundo ou simplesmente reproduzindo-a?

Se estamos no reino da cultura capitalística, qual o sentido então de identidade cultural? Auto-identificar-se burguês, culto, ilustrado, dono da verdade, com dinheiro para consumir representações que o fetichizem e o proliferem com os valores de sua classe? Fechar-se num pequeno mundo comunitário e reproduzir secreta e eloquentemente valores burgueses que julga combater? Ou encarar que identidade não é uma natureza, mas um processo de construção social que implica sempre relações de poder que atravessam desejos, sonhos, fantasias e de que não teremos qualquer chance se não suspendermos essas formas de definição de cultura e construirmos outras, singulares, sempre diferenciais, que nos garantam outros agenciamentos, outras formas de afirmação da existência?

Responder a essas questões, eis a condição da identidade na atual política cultural brasileira. Em três grandes eixos – cultura como um bem simbólico; como um direito de acesso a bens culturais, inclusive de máquinas para produção e reprodução de imagens e auto-imagens; e como um campo de trabalho e geração de rendas e riquezas, milhões de brasileiros foram convocados a debater e encaminhar formas de institucionalização da malha cultural. Ou seja, está em curso no Brasil, desde 2003, a possibilidade de criação não só de sistemas e planos nacionais e estaduais de cultura, mas de planos decenais municipais de cultura envolvendo seus mais de 5.500 municípios.

Isso quer dizer que todos os segmentos culturais — teatro, dança, música, artes visuais, audiovisual e patrimônio - vão ter representantes nos conselhos municipais de cultura, os conselhos municipais de cultura vão mediar a legislação sobre políticas culturais que respondam democraticamente as reivindicações culturais, e essas reivindicações culturais, para terem algum sentido, devem não só afirmar que cada indivíduo, grupo, comunidade, território produziu, produz e produzirá bens simbólicos, através de seus modos de vida, mas que o seu acesso a outros modos de representação cultural e aos laboratórios de sua reinvenção (pontos de cultura, pontos de leitura, infocentros, bibliotecas, ilhas de produção, entre outros) deve ampliar a massa de trabalhadores culturais e fazer emergir outra noção de mercado e de mercadoria.
O "bem simbólico" que está na base dessa definição e movimento cultural no Brasil não só quer apenas se opor a cultura, entendida até agora e ao longo de mais de 500 anos, como um ”bom negócio" — que ironicamente também precisa de bens, mas garantir e sustentar a indivíduos, grupos, territórios o confronto de seus bens simbólicos com outros bens simbólicos já consagrados, canonizados e de forte circulação no mercado capitalístico, bem como a reelaboração de outra imagem/representação de si e do outro, revertendo com isso a falsa imagem identitária que fazia de si sem perceber e ao mesmo tempo a "verdadeira” imagem identitária do outro que consumia sem refletir. E o mercado cultural daí derivado só faz sentido de for socialista e solidário.
Um exemplo desse investimento e agenciamento coletivo num contexto (g)loca|, é o trabalho cultural sobre a cidade de Alagoinhas articulado pela professora de Letras Iraci Gama. Ao longo de 30 anos tem reunido artistas, professores, gestores de cultura num debate insistente sobre falsos problemas acerca da identidade (o Parque de Santo Antonio ou Parque de São Francisco?), mas se colocado quase como uma instituição (o atual funcionamento da FIGAM, não vale) no levantamento, catalogação, digitalização e publicização de dezenas de milhares de peças culturais sobre a memória da cidade. Além disso, é a atual presidente do Conselho do Cultura que, como foi dito acima, deveria ter uma imensa tarefa ligada a criação do Plano Decenal de Cultura Municipal, através de uma secretaria que é também de Esporte e Lazer.
Vivemos, portanto, em Alagoinhas um profundo e difícil dilema cultural. De um lado, uma hegemônica e impiedosa massificação cultural, de outro um imenso acervo cultural em vias de se organizar, uma legião de sujeitos criativos distribuídos nos mais diferentes segmentos culturais, uma série de equipamentos e mesmo instituições culturais (vide a Secretaria de Cultura, Esporte Lazer, como uma das poucas na Bahia), mas sem um agenciamento público que faça essa leitura e coloque a cidade na vanguarda de um debate cultural na Bahia.

Do ponto de vista dos Estudos da subalternidade: crítica cultural comunitária, posicionalidade política e invenção de novos sujeitos de direitos — um dos projetos em execução no mestrado em Crítica Cultural do Campus ll da UNEB, esse dilema cultural vivido em Alagoinhas sequer será entendido se não rediscutirmos o sentido e papel cultural da FIGAM, criarmos uma secretaria específica para a cultura e dotar cada bairro da cidade de condições para que escolas e equipamentos de cultura (centros, bibliotecas etc.,) mobilizem personalidades de cultura e de educação para decidir sobre a noção de cultura em diferença que se quer para a cidade.
Assim, o debate sobre identidade cultural, a meu ver, torna-se fundamental não só para aprendermos a refutar e a esconjurar o fantasma daquilo que não somos, mas principalmente para nos habilitarmos a descrever realidades culturais concretas, sejam ele objetivas e/ou subjetivas, tendo sempre como um crivo: quem produziu a riqueza material existente - senão a natureza e a acumulação da força de trabalho, e a quem essa riqueza deve retornar. Ou ainda: qual o real débito da FIGAM e do município de Alagoinhas com a trabalhadora cultural e pessoa física professora Iraci Gama que, ao longo de décadas, tem investido seus próprios recursos na construção do patrimônio memorial da cidade? O mais incrível é que nem governos ditos socialistas - por que vinculados aos fantasmas stalinistas, se deram conta de que cultura implica força de trabalho e força de trabalho ainda deve ser comprada, remunerada, senão vira relações escravistas ou o que é pior: vira esquizofrenia pública denegada (não invisto em cultura, mas preciso do seu acervo para afirmar a cidade diante das instituições estaduais e federais, afirmo culturalmente a cidade diante das instituições, mas nego a imagem da criadora nas peças publicitárias sobre a inserção de Alagoinhas no PAC da cultura...).

TEXTO: Prof. Osmar Moreira é doutorado em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia e pós-doutorado pela Université Paris 8. Atualmente é professor titular e coordenador do Mestrado em Crítica Cultural da UNEB. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas; tropicalismo, cinema novo, subalternidade, micro política e políticas da subjetividade.
Email: osmar.moreira@uoI.com.br

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